Foto: Tales Aires/Arquivo Pessoal) |
Foi do outro lado do Oceano Atlântico que um jovem da periferia de Porto Alegre encontrou uma nova cidade para chamar de lar. A mudança para Faro, na Região do Algarve em Portugal, representa para Tales Cauim de Oliveira Aires, 22 anos, o sucesso de uma longa batalha, iniciada em março de 2016. A venda de sanduíches e a criação de uma vaquinha online o ajudaram a chegar lá. Na sexta-feira, 09 de setembro, ele deixou o bairro Glória, na Zona Sul da capital gaúcha, para cursar Serviço Social fora do Brasil como bolsista, graças à nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As aulas na Universidade do Algarve começam na próxima segunda, 19 de setembro. Até lá, ele pretende aproveitar os dias de folga para se familiarizar com o município, cercado por belas praias, que costumam atrair muitos turistas. Num dos passeios que fez, inclusive, conheceu a Ilha do Farol, localizada a 30 minutos de barco da cidade de Faro. A primeira impressão sobre a região está sendo positiva. "É uma cidade bem praiana mesmo, tranquila, com uma brisa, bem cara de praia mesmo, e não aparenta ser uma cidade grande", comenta Tales sobre o município que reúne pouco mais de 60 mil habitantes. Tales arrecadou R$ 12 mil, dinheiro que, segundo ele, é o suficiente para mantê-lo em Portugal por quatro meses. Durante este período, pretende arranjar um trabalho por lá, já que o curso de graduação tem duração de três anos. Para que o sonho de estudar no exterior se tornasse realidade, no entanto, o jovem precisou se empenhar muito. A garantia da vaga na universidade era só o primeiro passo. Tales ainda precisava descobrir como arcar com os custos da viagem. Foi aí que decidiu vender sanduíches e lançar uma vaquinha na internet. "Eu precisava de oito, consegui quatro mil a mais. Me surpreendeu bastante, foi espetacular", vibra Tales, contente com o resultado da vaquinha. Uma das colaboradoras quis conhecer Tales pessoalmente. 'Sol' acabou se tornando uma amiga. "É a dona Solange. Ela não gosta de ser chamada de dona, prefere ser chamada de Sol. E é um sol mesmo, uma pessoa muito iluminada", define o jovem. Uma semana antes da viagem, a aposentada, de 67 anos, ligou para Tales e o convidou para ir ao shopping. "Me deu um banho de loja", conta. Ela ainda fez questão de ligar para desejar boa viagem, entregou um cartão com uma mensagem motivacional a ele, e diz ter a intenção de continuar acompanhando sua trajetória Brasil afora. "O que me chamou atenção na história dele foi a garra, a vontade de vencer, correr atrás de um sonho. Sempre apostei nos jovens", conta Solange Viana Martins. A passagem para o país europeu foi paga pela Uniasselvi, universidade gaúcha onde Tales começou a cursar Serviço Social. Por isso, o dinheiro arrecadado na vaquinha será destinado aos gastos com estadia, alimentação e transporte, que ficam por conta do jovem. Ele já botou tudo na ponta do lápis, com o objetivo de economizar ao máximo. "Estou pensando em comprar uma bicicleta para não precisar pegar ônibus", calcula o estudante, que gastaria 40 euros por mês para usar o transporte público. Por enquanto, são sete pessoas instaladas no mesmo prédio, que comporta até 14 pessoas, sendo seis brasileiros e um jovem do Cazaquistão. A casa tem sete quartos compartilhados. O gaúcho divide o dormitório com um mineiro, que vai estudar Engenharia Civil. "A gurizada aqui é bem nova, a maioria tem entre 18 e 20 anos", conta. O alojamento onde Tales mora é vinculado à universidade e fica a cerca de cinco quilômetros do campus. O espaço acolhe estudantes de fora do país e, por isso, a mensalidade sai mais em conta: 150 euros.
A DESPEDIDA
Para chegar a Portugal, Tales encarou dois dias de voos e esperas em aeroportos. O estudante passou por São Paulo, Marrocos e Lisboa, antes de alcançar ao destino final. A "peregrinação" começou na madrugada de sexta-feira, 09 de setembro, quando Tales saiu de casa, em Porto Alegre, acompanhado de sua mãe e seu padrasto rumo ao aeroporto Salgado Filho. O avião para São Paulo decolaria às 6h30min. Na mala, além de peças de roupa, alguns itens indispensáveis para o gaúcho: cuia e bomba para o preparo do tradicional chimarrão. "Parece que é só sair do Brasil que a gente já sente falta dessas coisinhas pequenas, né? É incrível", reconhece Tales. Cartinhas, cartões e fotos da família também preenchiam os espaços na bagagem. Saindo da mala, as mensagens e lembranças iriam direto para a parede do novo quarto. Entre os autores das cartas, estava sua mãe. Na hora da despedida, as palavras faltaram para ela. "Eu só disse: 'vai com Deus' e 'te amo'. O resto ficou entalado", recorda Carmen Lúcia Oliveira da Costa. Prevendo que isso poderia acontecer, na noite anterior escreveu algumas palavras ao filho em duas folhas de caderno, mas Tales ainda não teve coragem de ler. "Pelo estado que ela tava emocionada, o que vinha dali era forte", imaginou ele. "É uma alegria ele não estar envolvido no tráfico, não sendo morto, estou descansada, mas preocupada. Ele nunca tinha saído de casa antes, era mimado, eu lavava a roupa dele, fazia comidinha para ele", tenta explicar Carmen, orgulhosa da conquista do filho. Tales partiu, e o coração da mãe ficou apertado, num misto de preocupação e alívio. O menino que abraçou o sonho de estudar fora do país é o mesmo que cresceu numa comunidade assolada pela violência, que viu a mãe sofrer agressões dentro de casa e testemunhou a entrada de muitos amigos para o mundo do crime. "É uma comunidade bem carente. Ou estão nas drogas, ou desempregados. Não queria ser mais um morto pelo tráfico, ou acabar na cadeia", desabafa Tales, que planeja voltar ao Brasil para transformar esse cenário através do Serviço Social. A mãe, que conhece bem a realidade do bairro, nasceu e se criou no Glória, diz nunca ter ouvido falar sobre uma história parecida com a do filho na comunidade em 45 anos. "Nunca vi ninguém sair daqui", garante. Ela diz que morre de medo de avião, mas que pela saudade, encara o desafio de voar pela primeira vez. Enquanto economiza para comprar passagem para um possível reencontro, recebe notícias do Tales quando vai à casa da filha mais velha, que tem internet. "Eu tô tentando colocar internet em casa", conta a mãe, que confessa ficar aflita quando passa um dia sem saber do filho. A ideia é, depois desses seis anos, conseguir cidadania portuguesa, voltar para o Brasil, aplicar o conhecimento adquirido em projetos comunitários e, quem sabe, retornar a Portugal. E se depender dos planos de Tales, Carmen vai ter que se acostumar com a distância. "Se eu gostar daqui, eu não sei ainda, eu tava pensando em fazer minha pós-graduação aqui, aí eu ficaria seis anos", reflete o estudante. "Vamos ver o que é que o Tales vai virar daqui para frente", finaliza o jovem sonhador.
FONTE: G1 - RS